Façamo-nos anjos na alegria de ser neto, na plenitude de sermos avós

Diz-se que são uns segundos pais, mas quantos não ocupam o lugar cimeiro?

Quem não traz na memória a crocância das bolachas de baunilha, religiosamente guardadas numa lata para quando chegávamos? O áspero das mãos enrugadas que conseguiam dar os carinhos mais suaves? A genica que, sem sabermos de onde vinha, permitia empurrar-nos durante metros infindáveis num carrinho de mão que tinha pouco óleo e chiava ao ponto de todos os vizinhos saberem que íamos a passar…

Era a eles que recorríamos quando o pai ou a mãe se zangavam connosco, e na cama deles nunca houve restrições por já sermos crescidos… sempre foi terreno permitido.

Vivemos com eles, crescemos com eles, aprendemos tanto com eles, e neste último ano muitos foram os que se viram obrigados a saber fazer tudo isto sem eles…

A morte é demasiado difícil de digerir, a morte que não tem despedida é quase incompreensível, fica uma incerteza no ar de que um dia, ao chegar ao quintal, lá estarão eles os dois, provavelmente a discutirem sobre um assunto tão relevante como o melhor sitio para instalarem a nova galinha… ah quem me dera ouvir agora uma das suas discussões!!

Hoje, ao olhar para trás, constato com alegria o privilégio e a honra que é crescer com os nossos avós ali tão perto. Tive três bem presentes, praticamente até à idade adulta, e não haveria papel que chegasse para descrever os benefícios dessa vivência. Mas no último ano, muitas foram as casas que, como a minha, ficaram sem as suas raízes. Na sua Mensagem para o “Dia Mundial dos Avós e dos Idosos”, o papa Francisco escreve que o Senhor continua a enviar os seus anjos junto dos mais idosos, para que a solidão seja menos sentida, se é que é possível… mas, ao lê-lo, não consigo deixar de me questionar: e nós, que ficámos sem os nossos anjos na Terra? Será que o Senhor nos pode também enviá-los, só para mais uma visita, só para um último colo?

É esta relação de simbiose que fica, além das bolachas, dos carinhos suaves e do carro de mão que chiava, fica a alegria de se ter sido neta… a plenitude de que se foi avô ou avó… a certeza de que nunca estamos sozinhos enquanto uns e outros existirem, aqui ou na vida eterna.

Não quero menosprezar a solidão de quem ficou, não houve momento que mais me marcasse nestes últimos tempos do que aquele de ter de levar carinho a alguém através de um vidro… Sei bem o que estes meses têm feito de mal a quem deixou de poder estar com as famílias e a quem se acha esquecido, ainda que, como realça o papa Francisco, o Senhor esteja com eles todos os dias… mas a nós, netos, que de alguma forma o deixámos de ser, a solidão é também ela marcante, e nós nem sequer temos vidro…

Desde janeiro deste ano, foram muitos os momentos em que a minha avó me surgiu no pensamento, é esta a forma possível de ela me visitar: imagino as gargalhadas características, alguns maldizeres típicos da idade e da certeza de viver, o olhar de encanto a presenciar as netas… Levantou-me questões de fé, como a morte de nenhum dos outros meus avós tinha feito, talvez pela forma ingrata do acontecimento, talvez porque ela própria tinha momentos de descrença, talvez porque não foi só a minha, mas tantos outros avôs e avós que se deixaram ir pelos desígnios deste último janeiro… deste último ano.

Volvidos seis meses, bastantes conversas com Deus e com ela, a certeza de que está num sítio melhor começa a chegar, faz-se um caminho de aceitação e de constatação… fui uma privilegiada por a ter tão perto, ela uma privilegiada por tão perto nos ter…

É esta relação de simbiose que fica, além das bolachas, dos carinhos suaves e do carro de mão que chiava, fica a alegria de se ter sido neta… a plenitude de que se foi avô ou avó… a certeza de que nunca estamos sozinhos enquanto uns e outros existirem, aqui ou na vida eterna.

E aos que por enquanto ainda aqui estão, avós e netos, façam-se presentes, façam-se anjos na vida uns dos outros, é a melhor forma de amar e respeitar Quem deu a vida por todos nós.

Cristiana Garcia
Secretariado da Pastoral da Família da Diocese de Santarém

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