“Estamos todos no mesmo barco” ouvimos esta expressão vezes sem conta nos últimos dois anos, referindo-nos à pandemia, ou a outras vicissitudes da vida que nos fazem acreditar que enfrentar desafios em conjunto os torna mais fáceis… mas aquilo que a maior parte de nós nunca teve de fazer, foi entrar efetivamente nesse barco… o que torna, de algum modo, a expressão irónica, ou será que não?
O barco onde todos nos achamos não é fácil, mas a verdade é que ainda não deu sinais de náufrago, ainda tem lugar para nós e segue uma luz que mesmo que não sendo constante, está lá, no horizonte para nos acolher e confortar.
Mas nem todos os barcos são assim… há os verdadeiros, aqueles que ocupados com outras dezenas de pessoas, por vezes já sem espaço, atravessam mares em horas difíceis, enfrentam a escuridão da noite e o infinito do dia… barcos em que ninguém quer entrar, não por vontade, nem sozinho nem acompanhado, mas cuja força da vida assim o obriga. E por vezes nem barcos há, há apenas uma necessidade de fuga, um medo do presente, uma certeza de que o que quer que haja para além do mar, para além do muro, para além das horas de caminhadas desertas e das longas semanas que viram meses, por vezes anos, à espera da incerteza do futuro, é melhor do que ficar.
O Papa Francisco desafia-nos, pela ocisão deste 107º dia do Migrante e do Refugiado, a “rumarmos a um Nós cada vez maior “, mas temos nós capacidade de o ver para além do eu? Reconhecemos nós o barco real dos outros, estando sempre tão centrados no hipotético do nosso?
Há um verso de um poema de um autor Somali que diz “ ninguém coloca os seus filhos num barco, a não ser que a água seja mais segura que a terra”, os últimos acontecimentos no Afeganistão mostraram-nos que o mesmo se aplica aos aviões, porque também ali o ar foi mais seguro que permanecer.. e tantos mais exemplos existem por esse mundo fora, na história da humanidade e no próprio testemunho da nossa cristandade. Maria e José são exemplo disso, que por necessidade de recenseamento numa terra que não era mais a deles, foram obrigados a dar à luz o “nosso” Menino numa manjedoura, porque lhes fecharam as portas, porque havendo tantos no mesmo barco que eles, não foram capaz de os apoiar e dizer “estamos nisto juntos”, “fazemos parte de um todo maior que nós”.
E sendo nessas condições que o Menino veio ao mundo, também no resto da sua vida terrena, Jesus trouxe-nos demasiadas provas de que o “estrangeiro” é tantas vezes o próximo.. de que o leproso, o marginalizado, aquele que nos parece mais distante, pode na verdade ser a chave para o reino de Deus. E ainda assim, e perante a nossa pequenez, tendemos a fechar os olhos quando nos pedem que sejamos nós acolher, mudamos o canal quando as imagens são fortes, recusamos partilhar a nossa terra segura, com medo de perder segurança para quem precisa dela mais do que nós. Temos medo…porque o nosso barco é expressão e o dos outros é realidade e não queremos trocar de lugar. Mas e se fosse Jesus?
E se fosse o filho de Deus a bater-nos hoje à porta, a pedir guarida, ajuda para encontrar um trabalho ou apenas a pedir uma palavra amiga, de conforto, iriamos recusar? Claro que não… então porque o fazemos a todos os outros filhos do Pai?
“Ninguém coloca os seus filhos num barco, a não ser que a água seja mais segura que a terra”, ninguém conhece o barco até estar verdadeiramente nele, ninguém existe em si próprio, sem um reconhecimento, um respeito e uma compreensão do outro, ninguém poderá viver plenamente em paz, enquanto alguém estiver em guerra e ninguém dará testemunho de fé se não acolher o seu próximo. Sejamos mais, num Nós que pode ser tão grande, e tão belo!